Tenho andado de nariz enterrado na História. Até que pensei, onde é que deixei a minha? Hoje vou escrever na primeira pessoa, enquanto Marta. Se ainda me lembro de mim? Que remédio.
Lembro-me de coisas novas todos os dias. Lembro-me que tinha deixado uma história por contar, a da minha amiga 79. Não é que tenha prazer em numerá-las, mas obrigaram-me. Por uma questão prática e de herança, quando me for embora deixo tudo numerado para facilitar as partilhas. Deixo todos os meus sapatos à 24. Todos os meus livros à 12. O meu coração à 79. Apenas por uma questão de partilhas.
A número 79 não foi uma amizade especialmente dificil, foi-se desenvolvendo como muitos milhares de amizades que se desenvolvem todos os dias pelo mundo fora. Mas daí a tornar-se numa coisa extremamente preciosa da qual queremos cuidar, ainda vai um espaço gigante. Como se gigante fosse pouca coisa. A número 79 ganhou-me toda, dos pés às mãos, adivinhando todas as expressões que faço quando me deparo com as coisas. Reconhece o meu sabor ácido quando respondo, e até mesmo o doce quando faço por isso. Reconhece que o meu ácido não queima, mas também funciona como defesa das respostas ainda mais ácidas que me vão salpicando. Cada vez me importo menos com a acidez de outros que não a nossa.
Ah, a número 79. É doce, perspicaz, bem disposta e presente. Tudo embrulhado, aos poucos eu mesma fui desembrulhando o pacote enorme que me tinha caído aos pés, e a nossa história também se desenvolveu da mesma maneira que outros milhares de histórias se desenvolvem. Degavarinho. Ou talvez não.
Número 79. Podia passar muito tempo a lembrar-me de tudo, a lembrar-me da sorte que algumas pessoas têm em encontrar outras. Pensem assim. Se calhar, estava mesmo escrito. Se calhar alguém escreve uma história diferente todos os dias e nunca espera que as suas personagens sejam reais e sabe-se lá bem como, acabam por tropeçar numa. E a minha sorte? Carrego-a nos bolsos, caso um dia ainda venha a precisar de alguma. Carrego-a como te carrego a ti,
a vocês
todos os dias, deixando-a a descansar no meu colo de uma viagem qualquer muito cansativa que tenha feito. Do metro da Alameda à Mexicana. De casa à escola, tudo a pé. As sortes nunca se deixam sozinhas, pode vir outra pessoa que as leve. As amigas também não. Deixo-lhes tudo o que tenho. Não quero levar nada comigo. A lei da gravidade confirma-se mais uma vez para mim, deixo-lhes tudo e mesmo assim ainda me sinto mais.. cheia