O dia em que eu morri


Hoje eu morri. Foi tão simples quanto escrever estas palavras, tão simples que não me custou nem doeu. Doeu mais olhar para as pessoas de quem gosto e pensar para mim mesmo que era a última vez que as via, que as tocava. Perguntei-me muitas vezes se durante a morte podia sentir cheiros, ter algum tipo de sensação. Uma parte de mim que se julgou mais conhecedora respondeu-me que seria tal e qual como estar dentro da barriga da mãe, enrolado num liquido viscoso e água da banheira sem espuma, onde não tinhamos consciência nem memória que nos valesse para guardar recordações desse tempo; só sabiamos que estavamos bem, seguros e satisfeitos, uma verdadeira jóia rara dentro de um vidro cheio de alarmes espalhados à nossa volta. Intocáveis.
Deixem-me que vos diga que a dita parte conhecedora, não conhecia mais coisa nenhuma que as outras partes não conhecessem. Posso sinceramente apostar um bracinho (agora que estou morto já não me serve de grande coisa) em como inventou tudo só para me tranquilizar. Para minimizar o medo de morrer antes do tempo. Mas teve de ser e como a minha avó costuma dizer, o que tem de ser é com muita força. E foi com esta força que sai de casa depois de ter cozinhado uma excelente refeição para mim próprio, carne de porco à Pedro Soares, ter posto a louça na máquinha e me ter certificado que tinha ficado tudo minimamente limpo e arrumado, nunca se sabe quem é que nos pode entrar em casa; e digo-vos mais, não há coisa que chateie mais os mortos do que a má-língua. Quando decidi morrer, certifiquei-me que as pessoas de quem eu gostava, gostavam de mim o suficiente para sentir a minha falta e não me maldizer a mim nem à minha casa, que prezo tanto.
Assim sendo, peguei no carro e conduzi normalmente em direcção à ponte 25 de Abril, como se fosse mais um no meio de mil que se dirigiam à praia neste dia quentíssimo de 20 de Junho. Porque na verdade, é exactamente isto que eu sou. Um no meio de mil, uma estatística para o Estado e para a árvore de família. Como é que me lembrarão os meus sobrinhos, os meus primos, a minha mãe? Enquanto Pedro em pequeno ou Pedro fase adulta? A adolescente certamente que ninguém recordará se nem eu próprio dei por ela. O número conta tanto que até a minha idade, 26, servirá de base para os que pouco ou mal me conheceram (e lá está, aqueles com quem menos me importei em deixar uma boa impressão) me chamarem de estúpido. De idiota. Com a vida toda pela frente. E a morte também, mas porque é que as pessoas nunca se lembram disso? É pelo peso da palavra, por ser tão pequenina e sem nenhuma letra mais especial do que as outras e mesmo assim, continuar a fazer tanto mal, ser ecoada tão solenemente? Pois bem. A partir de hoje, chamarei de Mortos a todos aqueles que estiverem vivos, pela condição tão profunda que a palavra lhes confere; mesmo que vos irrite.
Vou sentir falta dos meus Mortos. Foi neles que pensei quando estacionei o carro em plena ponte 25 de Abril neste dia dia quentíssimo de 20 de Junho deixando a chave na ignição, trepei a vedação encarnada que colocaram à pouco tempo
- li num jornal qualquer que o número de suicídios nas pontes tinha aumentado em comparação ao ano passado; agora pergunto-me se a colocação destas vedações foi propositada, como se o potencial suicida se arrependesse ao primeiro obstáculo, literalmente, que se colocasse no seu caminho ou até se assustasse com o tamanho da vedação e se decidisse ir matar noutro sítio qualquer. De que é que lhes importa, a notícia só falava de suícidos em pontes, os outros sítios quaisquer ainda não tinham entrado na estatística por isso podiam servir tão bem ou melhor que uma ponte, até os números passaram a ser mais importantes que a vida das pessoas
e sem esperar muito tempo para sentir uma série de coisas de que tinha lido em poemas como sentir o vento na cara ou a brisa suave que anuncia um prenúncio de morte escritos por poetas que obviamente nunca tinham tido uma experiência de suicidio antes de os escreverem porque se tivessem tido não estariam minimamente importados em sentir a brisa, ou o vento, ou a poluição ou outra coisa qualquer na cara senão o estoiro enorme que o corpo faz ao bater na água subitamente petrificada do mar; é um choque brutal, o de um peso já morto à muito tempo contra a água gélida, tão amável em aceitar todos os corpos que ali lhe caiem.
Não sofri. Não chorei. Momentos antes, deu-me vontade de rir só depensar que tinha a cidade aos meus pés, rendida aos encantos de um rapaz que nunca mais ia ver. Basicamente, que estava a ter o meu momento de protagonismo, como se a luz do Sol brilhasse só para mim. Incidia em mim como um foco comandado, não sei explicar. Senti-me feliz. E agora que aqui estou, consigo ver-vos tão bem.. A todos. Cheirar-vos de perto. Eu sou uma espécie de ar, uma espécie de matéria que vos toca sem que sintam.
E finalmente, fez-se silêncio. Não vos ouço mais, mas posso dizer que vos prefiro calados. Acho que vou gostar disto aqui.