Do teu vizinho António, com amor

Imagina esta situação. Uma mulher chega ao escritório depois de almoço, de barriga cheia e mole de toda a comida gordurosa que comeu, querendo apenas desapertar o botão das calças à vontade atrás da secretária e fechar os olhos durante um bocado antes de atacar a pilha de papel que a assistente lhe tinha posto à frente enquanto ela tinha ido almoçar. Mas esquece a pilha de papel. Quando voltou do almoço de barriga cheia e mole de toda a comida gordurosa que tinha comido, tinha a secretária arrumada e um envelope branco, sem remetente nem destinatário estrategicamente colocado no meio.
Começava assim:
"Querida Laura. Ponto. Mandei raptar a Inês e vinha-te pedir um resgate. Ponto.
Aposto que o estomago mole parou de fazer a digestão durante uns bons segundos.
Estava a brincar, sempre gostei de brincadeiras mórbidas. Não, não te vou pedir resgate nenhum, sei que também não andas às maravilhas de dinheiro. Mas raptei a Inês.
Bem, podia estar aqui a gastar papel a descrever todas as razões pelas quais o fiz, todas têm datas e eu curiosamente, sei-as a todas. A melhor razão que te poderia dizer, a primeira e a escondida em todas, é que te quero de volta. Quero-te de volta Laura, percebes? A Inês não é nada para mim comparada, e quando primeiro discutimos por ela, percebi logo que não precisava dela para te fazer feliz. Não lhe quero fazer mal, nem vou fazer. A menos que voltes para mim. Ponto. A partir do momento em que a tivemos, tudo piorou. A atenção que me davas, o jantar, a roupa mal engomada, o sexo que fazíamos (cada vez menos). Não quero falar do que está para trás, só do que vem. Amo-te tanto, tanto! Vês o que me obrigas a fazer, ao que me reduzes? A um ladrão, a um raptor. Volta para mim, sim? Pensa nisso.
Tens até sexta-feira ao meio-dia, sabes onde trabalho. Senão estrangulo-a e deixo-ta no tapete da entrada. A sério."
A mulher tinha tanto amor à Inês, ou pelo menos assim parecia, que desmaiou ali mesmo em pleno escritório, de botão das calças desapertado com um bocadinho de barriga mole e branca a espreitar, a rir-se para todos os colegas que vieram ver o espetáculo da Incrível-Mulher-Cheia-De-Amor e de comida gordurosa, a quem eles se riam de volta e com o dobro do gozo.
Um dos colegas, cansado de se rir da barriga que espreitava e de toda a figura da mulher espetada no meio da carpete, pegou na folha branca deixada à toa no meio do chão e ficou sério por um minuto. Perguntou para o ar se a Laura era casada, ou tinha sido, e afirmou que não sabia que a Laura tinha uma filha, a tal de Inês. A assistente e algumas mulheres trocaram uns olhares até que uma delas respondeu:
- A Inês é a cadela.

Que tipo de amor é este? Ridículo que até dói. É claro que a ridícula da cadelinha não foi raptada coisa nenhuma. O Jorge está em Barcelona a divertir-se com as espanholas em casas de banho públicas. A mulher teve exactamente a mesma reacção que eu imaginei que ela teria quando escrevi a carta, imitando na perfeição a letra do marido Jorge, que não podia ter ficado mais feliz pela mulher ter arranjado alguém à altura a quem dar o seu amor. Uma cadela estúpida, mandriona e pequenina, que não ocupa muito espaço. Ao contrário de um marido, de um amor que implique palavras e comunicação. Há pessoas que simplesmente não têm o dom da retribuição.. Não que os animais não sejam dignos do nosso amor, nunca me ouvirão dizer isso. Só que há pessoas que simplesmente não sabem reconhecer o que têm mesmo à frente dos olhos. E se calhar, são felizes assim. Na ignorância.