Passei Pelo Limbo E Encontrei Lá Disto

Um dia, não muito distante do dia em que nos encontramos hoje, um homem veio ter comigo a um banco de jardim e perguntou-me as horas, apontando para o relógio de tinta desenhado no meu pulso.
- São três da manhã desde que me conheço.
O meu relógio nem sequer tinha ponteiros mas eu era uma espécie de paragem obrigatória; gosto de pensar em mim própria como na Esfinge, que comia as pessoas quando erravam as respostas. A diferença é que eu não como nada nem ninguém.
Mas continuando a minha história, o homem acreditou nas horas, acreditou tanto que se foi embora a cantarolar sem pensar mais no assunto. É assim que eu gosto deles.
Com o homem seguinte já foi diferente; perguntou-me onde é que eu tinha arranjado um relógio daqueles. Respondi que era único no mundo mas prevendo a sua pobre sorte, disse-lhe que também podia ter um se assim o desejasse. Tirou uma caneta preta do bolso do casaco e maquinalmente desenhou um relógio antigo com cuidado e ponteiros, tão finos como fios de cabelo. Este processo torna os seres humanos autenticos robots, percebem? Por momentos perdem todo o raciocínio e controlo na sua vontade, apenas o cérebro trabalha, sobre meu comando.
Como de costume, para confirmar se tinha feito um bom trabalho, ficou ali parado a olhar fixamente para ele. Minutos depois, o relógio de estilo antigo do homem continuava sem funcionar, e certamente se julgou enganado por mim, dona do relógio mais bonito e mais acertado que ele já tinha visto. Perguntou-me as horas para o acertar.
- Você não percebe que eu nasci escangalhada? O meu relógio só funciona para mim.
Ele não compreendia o problema, como nenhum deles começa por compreender. O problema destes homens novos é que são feitos demasiado racionais para ver as horas que a cabeça deles deseja, pois só lhes é permitido ver as horas ditadas pelo mundo físico que julgava conhecer. O tempo não interessa, de que poderia interessar? No meu mundo, o tempo é cor-de-pele, não tem ponteiros e só eu é que o sei, só eu é que o posso definir de verdade. Este homem não era um robot mas vinha robotizado de origem, coitado. Não estava preparado para nenhumas outras horas senão as do Sol. E as horas da Vida, aquelas que realmente interessam? Perderam os ponteiros, se é que alguma vez os tiveram. Tenho os anos que o tempo me deu, tempo esse que ficou parado nas três da manhã desde o dia em que nasci e me definiram este destino de Esfinge, de mártire por um bem maior, de guardiã de portões invisíveis. As horas da Vida foi o que o homem não conseguiu ver; não estava preparado para nascer e por isso, sendo que todos os homens nascem fracos e se fortificam com a experiência e a dor, procurou respostas nos relógios alheios, com pouca coragem de olhar para o seu próprio.
- Está preparado para o que tenho para si?
Não faz mal, tinha de estar. O seu relógio mudou subitamente para as quatro e trinta e nove da tarde, e a expressão do homem alterou-se de surpresa. Fez um sorriso nervoso e declarou-se incapaz de receber seja o que fosse que eu tivesse para lhe dar.
- Não custa. Prometa-me antes que nunca mais olha para esse relógio.
Tremeu e prometeu. E eu menti ao dizer que não custava, como faço de costume para os encorajar ao optimismo.
- Está na hora.
Qual hora, senhor? Não poderia saber a menos que não estivesse preparado. O relógio desenhado na sua pele agora marca a hora da Morte, pessoal e intransmissível, compreende agora? A partir de hoje, o seu relógio está escangalhado para o mundo fisíco menos para si e para o seu espiríto animado. Compreende agora, senhor?
Está na hora. O outro homem aceitou porque não estava na sua hora. Custa sempre um bocado a habituar, mas vai ver que gosta. Vá, a sua chegou. Nao se prenda ao tempo que ele não há-de mudar nunca, apenas você e as circunstancias se encarregarão disso.