Compilação


Encontrar o azar numa mulher ao virar da esquina, num corpo doente e já frio, que outrora fora como um copo alto e esguio que já esteve cheio de vinho transformado em vida que transbordava do seu corpo. Vida de mulher e não de prostituta oferecida em bandeja de prata, já se passou tanto tempo que se tinha esquecido da sensação. Que homem casaria com o azar no corpo debilitado de mulher, seria como assinar a sua sentença de morte lenta e dolorosa! Mesmo que ela fosse fina como um ramo de oliveira, nem todo o amor do mundo pagaria o azar de uma vida.
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Amar-te é ser possuído por uma baleia, nadar e andar em território desconhecido ao mesmo tempo.
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Sabes quando minto e não o faço por mal? Estás com a mesma expressão de quem me apanhou. Hoje não sou eu que escrevo, é o espiríto da nossa despedida remediada para um casamento entre dois estranhos que se reconheceram à primeira vista; é a história de um amor roubado a alguém colocado de repente na nossa pele, na nossa vida. És muito jovem para casar mas não és para dar o teu corpo? Ás vezes as bocas unem-se, ferem-se de medo e de prazer que nos ultrapassa, e é assim que nascem os bebés - ou quem me dera que fosse assim tão fácil -.
Que amor fraco é o nosso, que sabor amargo tem a tua saliva quando não a sentes! Chamamos a isto amor, chamamos filhos ao suor que transbordou e que não teve coragem para ganhar vida. Olha para o que nos tornámos, dois estranhos cuja fraqueza é um ponto comum. Não é o amor que nos liga, são antes as partilhas de lençol que temos de aguentar. Ainda te lembras de quando eras tu o mentiroso e eu encolhia-me por dentro? Hoje temos os papéis invertidos, trocamos as memórias e eu continuo a fingir que acredito, que por ser dona do teu passado me és fiél. És fiél a quem te pentear o desejo, a quem te acalmar a fome e o orgulho ferido por todas as facas de casa, são tantas as marcas que aos olhos dos outros te tornaste um leproso.
Toda a tua dor é a minha. Tudo o que te magoa, magoar-me-á o dobro. Todas as tuas fraquezas serão as minhas e a seu tempo, serás perfeito como no tempo em que não te conhecia.
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Uma missa em francês é como um ritual desconhecido com gestos próprios que não compreendo; é um cheiro a sopa no ar, como se tivessem deixado cair uma colher em cada palavra. Os sentimentos são como uma rodela de choriço de sangue, do nosso sangue que dá sabor e gosto a tudo o que é dito, e é por ele que somos guiados e que falamos quase sempre.
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Não me apaixonei pelas tuas mãos nem particularmente pelos teus sapatos. Eu emprestei-te a minha vida e ter-te-ia emprestado mais se mo tivesses permitido. Mas foi só uma vida, suor da palma das mãos, impressões digitais e alguma tinta derramada... Quero que me escutes e me leias, olhes para mim da mesma maneira que olho para a orquestra deliciosa que tenho à minha frente. Porque é que ainda nos damos ao trabalho de falar em comércio justo, de estabelecer trocas de fluidos, de detalhes que fazem parte de todas as pessoas do mundo? Não passam de sinais, uma vida quando é tocada por uma orquestra deixa de fazer música para passar ela própria a ser a música, puro estilo jukebox, onde ponho sempre as moedas boas por masoquismo da minha parte.
Um pormenor deixa de ser um pormenor para passar a ser a coisa mais importante do mundo; a simplicidade de uma pestana caída na bochecha do nosso amor passa de uma pestana para um ícone, um pequeno santo adorado, a imagem mais bonita das últimas 10 horas. As pestanas e as vidas têm muito mais em comum do que se pode imaginar. A minha vida nunca mais cheirará ao mesmo, aquela tinta derramou-se para sempre.
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O silêncio não se forma na tua cabeça a menos que o desejes. Com muita ou pouca força, não se compara a uma doença que se apodera das células vitais com vontade própria; o silêncio escolhe minuciosamente a sua vítima. Cada vez me sinto mais próxima dele...
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Cada vez tenho mais a certeza de que nunca vamos poder ter aquilo que amamos.
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Tu para mim estás tão vestido que se torna difícil descobrir-te e ler nas tuas entrelinhas. Gostava que fosses como um baralho de cartas, num jogo onde é inevitável ficar-se exposto. Por vezes guardar acaba por se tornar mais difícil do que partilhar.