Hoje não existo.
Não vou ligar a televisão, não vou acender sequer as luzes quando entrar em casa. Vou-me deixar cair no sofá, com uma pilha de revistas por ler e um maço de tabaco por abrir. Vou-me enterrar no sofá até o sol se pôr e a luz natural se ir embora, aos poucos, bem lentamente. Aí vou estar sozinha como só eu sei estar. A minha figura vai-se confundir no escuro, fundir-se com um móvel qualquer e nem a minha respiração me vai denunciar. Sou só eu, que deixo de ser eu, para ser sofá, ser tapete, ser mesa, ser ar, ser nada.
Porque é isso que eu sou, um grandessíssimo nada, uma caixa cheia de nada e outra de coisa nenhuma. O cão sentiu a minha presença, só mesmo os animais para reconhecer uma figura humana no escuro. Lambeu-me os dedos dos pés, na esperança de alguma companhia. Hoje não sou capaz de lha dar. Queria-lhe atirar uma revista, mas não consegui mexer um músculo; a escuridão apareceu-me de frente e eu abraçei-a sem pensar duas vezes, sem pensar no meu animal, que podia ter fome e que afinal não tem culpa nenhuma da vontade de ser tudo menos a pessoa que é da sua dona.
Desculpa, pensei, ainda na esperança que ele me ouvisse. Hoje fiz esta promessa a mim própria, não vou sair daqui. Não me vou mexer, vou respirar pouco e esperar que aos poucos, o ar e o escuro me consumam e eu possa sair daqui.
Hoje eu não existo.
Não vou abrir a caixa de correio porque a Mafalda não existe, quê, Mafalda?! Não mora aqui nenhuma Mafalda!, não vou cozinhar para mim própria noite após noite, após noite, após noite, porque não aguento um namorado e muito menos um marido, homens, quem é que precisa deles?
Hoje não existo. Será que cheguei a existir?