Carta deslocada ao meu amor

Estar deslocada nunca foi novidade. Desde que me lembro de ser gente, de ter consciência daquilo que gosto e do que não suporto, dar por mim com a sensação de estar fora do meu elemento na verdadeira maneira do peixe fora de água, nunca foi merecedora de choque ou de surpresa. Ou sequer de tristeza. Ou de uma carrada de outras palavras acabadas em 'eza.
Sempre foi normal. Não é então de admirar que até as minhas cartas de amor, ou seja lá o que escrevo designar, para mim é amor, para ti pode ser batata do campo, sejam completamente surreais, arrisco-me a dizer pouco verdadeiras, nunca conseguirei dizer com precisão se escrevo aquilo que sinto ou aquilo que imagino gostar de sentir. Qualquer pessoa merecer ser amada, com ou sem imaginação.
Com a vista do seu amante completamente distorcida ou clara como outra comparação qualquer com limpidez de visão. Neste caso, no que toca ao amor, sou uma mentirosa, sim. Admito. Toda a minha visão é completamente falsificada, não consigo pensar direito, a partir do momento em que digo para mim que gosto, é tudo maravilhoso. Não consigo ser clara, dificilmente sou lógica ou objectiva. É-me difícil ser distante. É-me difícil escrever também com distância, falar de atributos físicos ou de cor dos olhos. Está tudo disforme, numa papa gigante, exactamente da mesma maneira com me esqueço facilmente da cara das pessoas de quem gosto muito. Já não me lembro da tua, mas também não me lembro de algumas das minhas grandes e boas amigas. Sei que elas existem, os contactos do telémovel, alguns facebook e fotografias espalhadas pelos cantos do meu quarto e casa provam-no, mas se quisesse fazer uma descrição física de todos, seria impossível ou ridícula. Até assim sou deslocada, quando digo o que sinto e não me sinto incompreendida porque vivo na maior parte do tempo dentro da minha cabeça. Não me sinto incompreendida, não me importo. O pior seria se a minha carta de amor fosse para o meu homem de sonho ou qualquer coisa do género, aquele ser que vive dentro de uma caixa do outro lado do mundo e que nunca vou conhecer porque os meus sonhos têm sido muito diferentes ultimamente.
A minha carta ao menos é real. Deslocada, porque nem sequer a escrevo na integridade e porque tu não fazes ideia da maneira como eu sinto as coisas, como te poderia saber, tu não perguntas e eu não digo. Tenho medo que percebas.
A minha carta de amor é primária, ao pé de ti as minhas palavras elaboradas queimam e evaporam para o mar. Lembro-me de bolhas de cuspo, vá-se lá saber porquê. De anéis de fumo, é isso mesmo, os anéis de fumo que se espalham no escuro, é nisso que eu gostava de acreditar que as minhas palavras se transformam e não num monte de lixo amontoado na minha cabeça, dizendo eu todos os vocábulos do mundo e nunca me sentir capaz de dizer alguma coisa inteligente, só com dificuldade, só com alguns copos em cima, não é estúpido? A minha carta não diz nada de especial, mas diz coisas que tu não sabes.
Por isso espero que compreendas que não ta posso mostrar nunca, escondo-a eternamente porque ela nunca estará concluída.
Se nunca mais te vir, ficará terminada aí mesmo no ponto onde a estava a escrever. Não é um diário, espero que consigas ver as diferenças. Não me interesso por dias, horas, locais nem descrições pormenorizadas. A minha carta de amor podia começar com uma dissertação sobre o casamento, as bodas de ouro ou o pouco investimento na imaginação e livre vontade das crianças pequeninas. A minha carta de amor é mais de mim do que de ti: é do meu fundo imaginário para o teu eu real. Acho que apenas eu a posso perceber. Acho que nem eu a conseguiria escrever até ao fim. Por isso meu amor, espero que compreendas o meu dilema: tenho coisas que te quero e gostava de dizer, mas nunca o farei. Não é por mal, é por vontade de te manter nem que seja por mais uma hora. Se me percebesses, acho que não ia querer voltar aqui,
a mim.