Livros

Era eu, sem mais nem menos, que escolhia um livro com os olhos e o tirava da prateleira. Dava-lhe um nome de um planeta, Júpiter, e automaticamente designava-lhe uma cor. Castanho ou pôr-do-sol ou azul celeste ou amarelo torrado. O meu último livro era castanho, de capa e de sentimento. Falava de um pai, de um filho Francisco, de um pai e de outros filhos, Maria, Marta e Simão. Foi automaticamente castanho, cor de terra onde se prendem muitas raízes de arvores velhas, foi logo nisso que pensei. No elemento da terra, de onde tudo nasce e se transforma. Há livros assim. Escolhi-o com os olhos, deixava-o na mesa de cabeceira antes de adormecer às apalpadelas, adormecia com a cor da terra a esbater-se na minha almofada. E pensei durante muito tempo no poder imaginável que uma história tem sobre a nossa própria. Primeiro, a inveja, por não ser tão brilhante, nem crua, nem bruta. Depois, o medo que se repita, pela sua crueza, brutalidade, brilhantismo. Que ficasse sempre fechada no livro, mas já era tarde de mais. Uma história diferente tem muito muito imenso poder sobre a nossa. Mete pena, raiva, medo, sonho, o nosso mais o dos outros, das Martas e das Marias, juntas quem sabe? Juntas como eu, uma Marta e uma Maria em mim. Dependendo dos dias, vou-me definindo. Se sou Marta, grande e com vontade de comer, a prometer
- Nunca mais volto.
se sou Maria fechada no quarto a ler romances, atirada para cima da cama pelo marido que lhe dizia
- Nunca mais volto.
e de uma maneira ou de outra, haverá alguém na minha vida que nunca mais voltaria, ou eu ou alguém como eu, de uma maneira ou de outra, sempre eu a nunca mais voltar, e as únicas que continuam sempre a vir ao mesmo sítio são elas, as palavras. As palavras das histórias.
E como li mais do que uma vez, chegados ao quilómetro trinta, o castanho passa a azul celeste, com os pássaros do Rafael a esvoaçar por cima da minha cabeça, o quilómetro trinta são todos os dias da minha vida quando me deito para recomeçar, recomeçar onde as deixei, às histórias, às outras e à minha.