título:

E a vida, senhor Fernando?
"A vida, é uma desgraça. Aquela gentinha que passa e não sorri, pior ainda. Quando dão encontrões na rua e fingem que é normal, que não ligam nenhuma e que não sentem. Também não lhes dói quando lhes dão de beber água com gás aquecida. Também não sentem arrepios quando os picam na pontinha dos dedos com agulhas. Isso é que chateia uma pessoa, é levar uma carrada de encontrões e não ouvir porcaria de desculpa nenhuma, nem - desculpe - nem - estou com pressa -. Coisa nenhuma! Esta gente nova pensa que pode imitar os animaizinhos, esses coitados não pedem desculpa porque não sabem o que isso é, não têm termo de comparação. Agora um homenzinho que tem idade para ser meu filho mais velho, esse não tem desculpa nenhuma. Nem a pressa, nem a chuva, nem ter pisado cocó de cão. Isso é outra coisa que me chateia à brava, o cocó de cão pela rua fora. Os jovens são porcos, e deixam os cães serem piores. Caminham ao lado da porcaria e não ligam nenhuma, acham normal. E se fosse na casa deles, com bostinhas deixadas por todo o lado? E eu, que vivo na rua? Gosto disso, por acaso? E mesmo que não vivesse, preferia cortar o intestino ao meu cão do que deixá-lo defecar na rua..."
E a porcaria humana, senhor Fernando, não o incomoda?
" Oh rapaz. Dessa podia falar aqui um dia inteiro. Mas vou resumir a isto. São piores que cocós, porque do cocó uma pessoa até se pode afastar, manda um saltinho para trás e lá se safou de mais um. Agora das pessoas rapaz, isso é que é mais complicado, porque temos de lidar uns com os outros mais cedo ou mais tarde. Tu que andas lá nas universidades a estudar para te fazeres gente, deves perceber mais disto do que eu, deves lidar com gente igual a cocó todos os dias."
A coisa que mais me chateia é sermos todos parecidos.
" Então mas tu querias o quê, gente a fazer o pino aí pela rua fora? Não podes pedir muito mais do que aquilo que tens hoje. Pior era quando eu tinha a tua idade, que não podíamos fugir ao esquema. Nem pensar em sair dele, quanto mais fugir. Os jovens imitam-se uns aos outros, mas é inevitável. As coisas boas já foram inventadas muito antes de ti, e se algum deles tem uma ideiazita melhor que a dos outros todos juntos, está tramado. Não há lugar para pessoas diferentes rapaz, não há lugar para mim. Tu vais encontrar o teu se quiseres, se tiveres essa sorte. Agora eu que estou velho, espero que encontres um melhor que o meu. O meu lugar é na rua, porque não tive outra hipótese. E mesmo assim, apesar de não ser grande coisa, tenho um grande grupo de seguidores! (ri-se)"
O senhor Fernando é uma personagem...
" De banda-desenhada, até sou. Sabes o que é que me chateia mesmo? Que ninguém se oiça. Que seja tudo ao grito, tudo ao pontapé. Eu próprio caio nesse disparate rapaz, mas tu, tu és diferente. Tu tens uns olhos tão grandes que a tua alma não pode ser pequena. Eu, por outro lado, tenho estes olhos de piriquito, já reparaste? Gente como tu há pouca, e devias ter consciência disso. E era gente como tu que se devia fazer ouvir, sem o grito nem o pontapé. Nem devia ser pedir muito não concordas? Devia ser um dado adquirido. Mas não. É preciso pedir calmamente que não gritem, e mesmo assim, vai ter de ser um pedido a alto som! E é uma tristeza. Nem me dá para rir."

Quanto a mim, não me dá nem para uma coisa nem outra. Dá-me para escrever. E se escrevo mal, paciência. Escrevo como o português me ensinou, a juntar letras e a dar palavras, não o sei fazer de outra maneira. É isto que a minha cabeça tem para oferecer, letras e virgulas. Quanto ao resto não sei. Nunca fui com a cara dos números.
O senhor Fernando manda dizer que é outro dos problemas da juventude. Não vai com a cara das coisas e tornam-se desconfiados de tudo o que mexe, e não mexe. Porque refilam com as canetas mesmo antes de lhes tirarem a tampa. Será?