O fenómeno curioso das palavras dentro da cabeça

Estranho mundo em que vivemos. Digo "vivemos" porque não me refiro exclusivamente a mim enquanto ser andante com as duas pernas que deus me deu. Digo "vivemos" porque vivo eu, e todas aquelas palavrinhas que habitam na minha cabeça.
Curiosas palavras que falamos para dentro. Somos capazes de enormes textos poéticos quando estamos a sós com a nossa cabeça, da mesma maneira que construimos os mais incríveis argumentos para nos convencermos de que somos felizes. Que estamos bem assim. Que até nos conseguimos acomodar. Quando na verdade, é tudo menos assim.
E se de repente, saltassem todas cá para fora? Numa espécie de motim, aos gritos e pinotes, em direcção às pessoas para quem as pensamos. Que lhes entrassem cabeça. Que as fizessem entender. Que se casassem as palavras, como um cruzamento de castas. Para fazer um mundo melhor. Mais entendido.
Se de repente, saltassem todas cá para fora, tudo seria fácil. Entendido, como uma caixa antiga finalmente aberta, depois de muitos anos. Com cheiro a mofo e terra molhada. As palavras dentro da cabeça deixariam de existir, e isso certamente seria uma coisa terrível. O fácil é feio, nunca ficou bem a ninguém. As palavras que vivem dentro das cabeças das pessoas dizem-lhes que só os fracos escolhem o caminho mais fácil, mas são essas mesmas palavras que nos obrigam a segui-lo. A mim e à pessoa que vive dentro do meu pensamento, que reclama e gritaria com todas as forças. Se pudesse. Se ao menos eu a deixasse...
Se ao menos todos as deixassemos. Raras as pessoas que as libertam. Como deixar o cão correr despido de trela pelo jardim. Meu deus, e se de repente ele saltasse à perna de alguém para a morder? Provocaria dor. E a dor mais uma vez nunca foi bem vista por nenhuma das palavras interiores. Ninguém aprecia a dor, coitada. A dor faz-nos acordar. Quando é muito forte, deixamos de a sentir. Passa a ser um hábito, que as palavras grandes e complexas substituem. Depressão. Tristeza. Melancolia. Estas palavras visitam-nos muito. A mim, a ti. Expulsamo-las? Nunca. As palavras são muito mais felizes quando são muitas, e complexas. Se tivermos Depressão, Tristeza e Melancolia dentro de uma cabeça só, melhor! Tanta dor num saco acaba por ter alguma consequência. Ou se afogam dentro de outras ainda maiores -como a Morte,- ou reclamam o seu direito de viver. Através do choro. O choro é ainda melhor que a dor, é como uma anestesia geral. Durante o choro, só o sentimos a ele.
Através das palavras escritas. Das palavras que nunca dissemos antes, e nunca soubemos que tinhamos cá dentro. Por isso nunca conseguimos ser coerentes num discurso sem treino, num discurso repentino. Se nunca tivermos dito as palavras, vão sair esquisitas. Como um russo a falar português. Soariam mal e desconhecidas! Por isso falamos tanto. Treinamos o discurso. Treinamos todos os dias para quando chegar a nossa grande oportunidade. O Dia das Palavras Nunca Ditas. O discurso sem treino sai marreco e sem jeito. Quando queremos dizer tudo de uma vez, é o que acontece. As palavras gostam de sair, mas nunca ao mesmo tempo. Porque têm de ser ouvidas. Porque temos de as dizer.
Mais cedo ou mais tarde. Temos de as dizer. Por muito que nos custe.
Ouvi dizer que as palavras dentro da cabeça são como os piolhos; uma vez cá dentro muito tempo, nos mordem a Alma.