Histórias para se contar num Domingo à tarde antes da novela

No meio de tantas histórias sem conteúdo nenhum ao certo, surge a nossa. A nossa, eu disse a nossa?
Queria dizer a delas. Cardolinda, Raminera e Milfácia, sem uma aparência que dê nas vistas ou até para dizer a verdade, sem nada digno de um virar de cabeça no meio da rua.
Ou será simplesmente injusto ter uma noção do que os olhos revelam? De longe somos todos iguais, ouvi dizer. Mas eu não sou mais do que um mero espectador, um mísero contador de histórias mal agradecido que nem sequer é pago para as contar e só o faz porque no fim acaba por ser pago da melhor maneira possível; por precisamente sermos todos iguais de longe, há pessoas tiradas à sorte num saquinho azul do Lotto que a muito custo, são analisadas de perto. Pelo menos, tão perto quanto a minha cabeça alcança.
Podia começar por qualquer uma delas, já que a vocês vos faz ainda menos diferença do que a mim. Ao menos eu tive o prazer de as ver de perto, quer dizer, de binóculos. Segui cada uma delas durante todos os dias de todas as semanas e acabei por me aperceber da importância de mulheres como Cardolina, Raminera e Milfácia na sociedade, nas casas. A Cardolinda é óptima a cozinhar, a pintar pratinhos de louça, e a cantar à janela, estilo carochinha do século XXI com uns decotes ai-jesus-deviam-ser-proibidos e calças muito justas; a Cardolinda espera pelo principe encantado montado numa viatura qualquer de 2 ou mais rodas, sempre à janela... e coser botões. No entanto, é fraquinha a engraxar sapatos e dobrar meias alheias, trabalho esse que a Raminera faz na perfeição. É comum encontrar a Raminera a um dia qualquer da semana dentro de uma manifestação, de bandeira na mão só por ter uma voz grossa e possante e o direito de reclamar (ninguém tira o direito de reclamar àquela mulher?!, só pelo gosto de se ver no meio da multidão e ser mais uma. Ao longe e especialmente dentro de uma multidão, somos todos particularmente iguais, normais; a Raminera gostava da normalidade, coisa que a Milfácia se orgulhava de não ser. Tem o corpo quase totalmente coberto de sinais e tem um dedo a mais no pé esquerdo, do qual se orgulha muito e pinta a sua unha com mais dedicação do que as outras todas. Pensa que os seres especiais merecem mais atenção, senão morrem e tornam-se como os outros; por isso, a Milfácia não encara o seu dedo a mais como um dedo mas sim como uma jóia, um rubi de carne e osso que tem o prazer de pintar sempre que tem tempo livre.
Eu, se fosse a Milfácia gostava de conhecer mais pessoas como a Raminera e a Cardolinda. Só de pensar na quantidade de pessoas boas que ainda andam por aí e que se recusam a ser vistas de perto, o meu estômago dá uma volta brutal sobre si mesmo; quer sair disparado pela minha garganta, ganhar vida e berrar " não vêm que é mesmo dela que precisam? Tu aí, que andas sempre com as meias cheias de vincos, fala com ela!"
É triste. É triste para mim que sou velho e de quem já ninguém se aproxima, ficar a ler as almas das pessoas através de uns binóculos e não poder fazer absolutamente nada para as tornar mais unidas. Um dia vão desaparecer de vez de todos esses sítios por onde andam sozinhas e pensar que poderiam ter tido melhor, que podiam ter conhecido uma Cardolinda, uma Drimeirreira ou uma senhora como a que toma conta de mim às quintas-feiras, a Pritaúlia. Que triste é ser um mero espectador desta miséria, da normalidade que a Raminera tanto admira e quer preservar.
Porque é que ao longe somos todos iguais? Porque nunca ninguém se deu ao trabalho de procurar mais de perto. Digo-vos eu que tenho mais de 30 anos e ainda mais anos de experiência em causas perdidas. De encontrar o que lhes falta sem que isso lhes caia em cima por obra e graça do Senhor Deus, que não pode tomar conta do recado sozinho, como seria possível fazê-lo?
Agora riem-se de mim, que dou milho aos pombos e vos conto esta espécie de história, com ou sem moral nenhuma, nunca consegui tirar moral alguma das minhas histórias. Se me pagassem conseguiria arrancar uma à pressão, com algum jeitinho.. Mas não o fazem. E dou o meu melhor para vos ensinar qualquer coisinha com estes meus 30 anos (ou mais) de experiências com pseudo seres humanos. Riem-se de mim porque alimento os únicos seres vivos que me dão alguma coisa em troca sem falar, interesseiros ou não pelo milho, são mais inteligentes em se aproximar de mim mesmo sem me conhecer do que muitas pessoas, interesseiras e com boca.
Falo-vos destas senhoras, solteiras na maior parte do tempo, assediadas por pessoas que não têm cérebro mas o milho que dou aos meus pombos no tempo que sobra ao movimento solteiro. Serão eles os seres humanos e vocês os animais?
Não vos quero aborrecer, e muito menos dignificar pouco as minhas três cobaias, que nunca se viram e nunca se vão ver, apesar de morarem apenas a algumas ruas de distância. Aprendi a gostar mais delas do que da maioria. Talvez porque as vi de perto.. Ou não as vi de perto o suficiente.