Onde tudo começa.


Mania a minha de atribuir características humanas às coisas. Mania a minha e a de todas as miúdas pequeninas que ainda falam com as Barbies, com os Nenucos e tudo o que tenha aspecto de cara. Gomas sorridentes. Uma árvore nariguda. Se tem boca, parte-se do princípio que fala. Chamem-nas de maluquinhas, mas eu pessoalmente acho que estas conclusões práticas têm muito que se lhes diga, e à medida que crescemos, temos tendência para perder a capacidade de as fazer. Crescer é uma seca. Deixamos de acreditar que podemos falar com as coisas, até com pessoas sem passar por doidos varridos. Que as crianças não são parvas lá isso não são, não podem é ser levadas demasiado a sério..
O meu caso, considero-o mais grave. Pelo meu tamanho - que não chega a ser tanto quanto isso, e por isso mesmo vou-me focar mais na minha idade, que isto é uma tese séria e eu como boa adolescente que sou, gosto de ser levada a sério - já devia ter parado de falar com as coisas, especialmente com as que não me podem responder de volta. Falo com o que tem olhos, pernas e unhas (especialmente unhas, só as coisas vivas é que têm unhas) e quando chego a casa, falo por exemplo, com o computador. Com o papel. Com o espelho, com a minha caneta que não funciona. Falo e penso, penso na filoxera -uma bactéria que deu cabo de uma série de plantação de vinho do Porto no tempo dos nossos reis-. De um momento para o outro, a filoxera deixa de ser um organismo mau, podre e sujo para ser a Filoxera de tranças loiras compridas, de vestido leve de pano às flores, uma figura saltitante nos prados Austríacos, uma prima da Heidi mais ou menos afastada. Quando me perguntarem pela Filoxera, respondo-lhes que está bem e que é uma miúda rija, bem capaz de comer um cabrito sozinha. Ora, isto quererá isto dizer que não tenho amigos, daqueles reais e com unhas? Até sou capaz de ter. Amigos nunca são de mais, especialmente os imaginários. Os que nos fazem companhia quando todos os outros já foram dormir, os que dançam ao nosso lado dentro dos nossos ouvidos quando toca a nossa música favorita. A nossa consciência é ela própria um amigo imaginário, o mais parecido connoso que pode existir. E a Filoxera é só mais uma personagem inventada para me distrair, para me rir mais um bocado sozinha e lá está, para todos à minha volta poderem confirmar para os seus próprios anjos e diabos - vês, eu bem te disse que a Marta não batia bem...
É aqui que tudo começa. Nas nossas cabeças, na nossa alma, em todos os agentes responsáveis pela solidão e pela falta dela. A boca é só um meio para atingir um fim.