A História da Marta Contada pela Albertina

De um cantinho do quarto, Albertina olhava para o roupeiro, escondido no escuro.
Não tinha medo, - medo de quê, nunca tivera! - que saísse de lá um daqueles dinossauros estúpidos que o irmão falava a toda a hora - como se ela acreditasse sequer em dinossauros, um bicho tão grande tinha pisado os prédios apenas com um passo e pelo menos os do bairro continuavam todos de pé - e tão pouco tinha medo de fantasmas. Os fantasmas eram seus amigos; de facto, ela estava exactamente no mesmo cantinho onde um deles a tinha vindo cumprimentar, à muito tempo e perguntar se sabia onde a mãe guardava as bolachas. Ela encolheu os ombros, e respondeu
- As bolachas fazem mal aos dentes.
O fantasma era de um menino, com uns 7 anos, quase transparente de tão branco que ela. Mas de um branco puro, clássico, tão brilhante que ela não pensou duas vezes em dizer
- Acho-te bonito.
Desta vez, o menino fantasma corou. Corou tanto que Albertina jurou para os seus botões ter-lhe visto duas bolinhas cor-de-rosa a nascer nas bochechas do menino. Deviam ter a mesma idade, porque é que não se casavam de uma vez?
O menino fantasma encolheu os ombros e sorriu. Era muito transparente para se casar, sem falar de que ele gostava muito mais de bolachas do que ela. Albertina não conseguia perceber; o menino falava pouco, falava tão baixinho que ela tinha de se esforçar muito para o compreender. A pensar que ele tinha medo de ficar preso, tentou convence-lo usando os seus truques de menina.
- Então fazemos assim, ficamos namorados durante este dia e depois se gostares muito, caso-me contigo.
O menino não pareceu convencido, por isso Albertina cedeu.
- E deixo-te comer as bolachas. As de chocolate!
A expressão do menino mudou tão depressa que Albertina achou que tinham feito um acordo; que até era capaz de ter jeito para isto!
- Então ficas comigo para sempre?
Do que Albertina tinha medo era da solidão. Queria lá saber se o menino era fantasma, gostava dele e pronto. Não tinha medo dos dinossauros, de ficar com dentes podres das bolachas nem do armário meio aberto no escuro. O armário meio aberto era sinal dele, de companhia e disso é que ela gostava. Gostava dele e pronto.
O menino sorriu, mas desta vez não corou. Foi um sorriso triste, de despedida. Como se gostasse dela mas não o suficiente para ficar. Prometeu que voltava no dia seguinte, à mesma hora. Albertina quis abraçá-lo mas o menino desapareceu no escuro, ele era o escuro.
Por isso, com 7 anos de memória mais pronta que nunca, tentou guardar todos os detalhes dele na cabeça; o fatinho engomado, os sapatos limpos, o cabelo loiro bem penteado, os olhinhos azuis sorridentes. Seriam azuis? Sim sim, azuis, era muito cedo para se esquecer, não se podia esquecer, memória desastrada da Albertina!
Foi com medo da solidão que se pôs à espera, no cantinho do quarto no dia seguinte. E no dia depois desse. E no dia depois, e em todos os outros dias do mês. O menino não apareceu, e por isso, Albertina fartou-se de esperar. Gostava dele mas não era muito paciente, e por isso, começou a querer gostar dos meninos que se cruzavam com ela todos os dias. Não eram de maneira nenhuma tão brilhantes como ele, nem tão limpos e engomados; falavam de mais, tanto que ela não os percebia e sinceramente, não fazia um esforço para entender.
Hoje Albertina lembrou-se do menino fantasma, lembrou-se de como era gostar porque sim, sem saber de onde era e o que os separava. O que os separava foi o que ele sempre soube e ela nunca compreendeu, como nunca compreendeu o medo das pessoas pelo escuro.. Foi a distância que o levou mas foi no escuro que o encontrou.