Verão de 1992
Um cientista americano anuncia que o mundo vai acabar ou que pelo menos uma grande parte do continente será destruída de uma forma tão abrupta que a morte será o destino certo para centenas de milhões de pessoas. Se esta previsão se confirmasse, qual seria, na sua opiniao, o efeito que teria nas pessoas entre a altura em que tomassem conhecimento do facto atrás referido e o momento do cataclismo? Por fim, pessoalmente, o que faria nessa derradeira hora?
Pequeno-almoço apresenta
-se
Pegando em
todos os pormenores da vida que julgava começar a ter nos eixos, reconhecia
como grande final que não se conhecia. Não fazia a menor ideia de quem era
aquela rapariga que começava a sorrir para as borbulhas que desapareciam aos
poucos, pois sempre lhe tinham dito que o acne aos 20 já era coisa do antigamente
e que hoje em dia toda a gente conseguia ter uma pele perfeita sem se esforçar
minimamente. Não conhecia aquela cor de cabelo, hoje na moda estavam os
vermelhos e os ruivos e o dela nem sequer de um nem de outro se aproximava.
Pintar era a solução. Ou começar por aceitar-se? Isso sim seria uma mudança. Sentir-se
bem na sua pele. Olhar para todas aquelas pessoas na rua e compreender que
podiam ser todas diferentes, umas melhores outras piores, mas finalmente
diferentes e que ela não se podia tentar encaixar em nenhum dos géneros que
rotulava porque não cabia em nenhum rótulo, era demasiado grande mas também
inexistente. O sol fazia-a sorrir, isso sabia. A Primavera trazia uma sensação
renovada de quente que lhe aconchegava os ossos, também eles sorriam e doíam
menos. Nunca foi uma pessoa sofredora, com más memórias e fotografias de mares
e florestas com frases profundas escritas a branco algures, isso não a definia
nem quando se sentia melancólica. Reformulava então todos os dias aquela frase
primordial que repetia em jeito de espetáculo performativo em frente às pessoas
que conhecia: eu também me conheço. Mentira: eu não faço a mais pálida ideia de
quem sou e não há mal nenhum disso. Eu não pertenço a lado nenhum, melhor
ainda, posso ser de todo o lado. Eu não sou nada, só no fim saberei o que fui. Perfeição
das perfeições! Vai sendo. E hoje ia ser uma bailarina a solo.
Para o que
é que te havia de dar, numa tarde de Domingo. Agarraste em ti e no dinheiro que
andavas a juntar para uma máquina fotográfica e guiaste até ao centro comercial
mais próximo para te tornares uma pessoa nova.
Admite: as
tuas visitas frequentes ao Facebook andam-te a dar a volta à cabeça, todas
aquelas fotografias colocadas propositadamente para que a vida dos seus modelos
pareça melhor e mais interessante do que aquela dos que as vêm, admirados. Como
é que elas conseguem, perguntas. Não estás propriamente à espera de resposta
nenhuma, mas tens curiosidade à mesma. Porque é que elas existem. Porquê,
porquê, porquê. Não chegas a nenhuma conclusão para além de uma ponta de inveja
das peles bronzeadas, dos cabelos exageradamente compridos ou a caminho de o
serem, dos vestidos colados ao corpo todos do mesmo estilo, saltos altos e
batom escandaloso nos lábios. Olhas para ti no espelho retrovisor e sentes-te
um pouco mais segura: tens a certeza quando te pões no provador de uma loja que
não tem nada a ver contigo, dentro de um vestido que não podia ser menos o teu
género. Ou pelo menos foi o que pensaste de todas as vezes que calçaste os
ténis, puseste as calças de ganga e a camisola simples de todos os dias. E isto
não era para ir para as aulas da faculdade, era para saíres à noite quando
arranjavas coragem para deixar os livros de anatomia e só conseguias pensar em
rapazes.
O teu eu
intelectual abandonou-te. A tua racionalidade ficou fechada na página 450, ao
pé de colunas vertebrais e esqueletos. Trocaste-a pela noite, pelos vestidos,
por um novo corte de cabelo. Saíste da loja com 2 sacos de roupa que não podiam
ser menos o teu antigo género. E tinhas de admitir que estavas satisfeita.
Abandonaste completamente a ideia da fotografia, passaste a querer ser a modelo
das fotografias, mas sem máquina. Os outros que tas tirassem. A sensação de
beleza espontânea preencheu-te, mas não por muito tempo. A tua máquina
ter-te-ia tornado eterna, sabias? O poder de guardar uma imagem no tempo e no
espaço seria muito mais satisfatório do que o poder de sair num bom vestido mas
que pouco dizia sobre ti. Só reconheceste isso muito mais tarde, quando a roupa
deixou de te servir pouco a pouco, as bolachas no armário foram aumentando,
assim como os chocolates e as comidas pré-congeladas. As saídas noturnas não te
preenchiam e o curso não te deixava muito tempo para elas, devias ter pensado
nisso antes de te tornares mais uma fotocópia de Facebook.
Para o que
é que te havia de dar numa tarde de Domingo, assim escrito e colocado por
extenso, consegues analisar a estupidez do acto irreflectido? Guarda o teu
dinheiro e usa a tua cabeça. A única conclusão a que chegaste é que sais cada
vez menos à noite, não melhoraste as tuas técnicas de conversa como os vestidos
tinham prometido e toda a gente pode confirmar que continuas sozinha, mas agora
a juntar dinheiro para uma inscrição no ginásio.
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