Os desastres de Sofia

Desde que sou pequena, sempre gostei de ler. Da mesma maneira que alguns miúdos têm jeito com a bola e com as contas, desde que me lembro de mim que me acostumei às palavras. Aprendi a ler tarde, só com 8 anos, os meus professores e a minha mãe julgaram-me 'atrasada': hoje penso no meu pequeno eu como ainda hoje me acredito, com o meu ritmo próprio. Às vezes demasiado lenta, outras vezes estupidamente adiantada. Lembro-me quase sempre da Sofia, a terrível e desastrada Sofia que marcou a minha infância numa capa amarelada e mole, letras antiquadas e protagonista de uma história estranhíssima e macabra, um pouco ao estilo da Disney onde os bons têm de passar por coisas terríveis até à vitória final.
Para a pobre da Sofia, as coisas nunca corriam bem. E à boa maneira vitoriana, apanhava sempre o pior castigo possível. Falham-me alguns pormenores, mas ainda me consigo lembrar da sua figura desenhada a preto e branco, frágil e com uma cara constantemente assustada. A Sofia era para mim na altura uma menina digna de dó e piedade, era vaidosa e curiosa, um pouco sabichona e gulosa. Se fosse uma heroína Disney, seria uma fusão entre a pobre e bonita Cinderela e a Alice, curiosa e filha de boas famílias. Hoje recordo-a ainda com mais pena: vagueio pelas páginas do meu livro, tudo lhe corria mal. A boneca derretida, as frutas comidas, as primas perfeitas com quem passava férias que não a infernizavam mas que a faziam sentir-se uma ovelha negra por tentar agradar a todos e só fazer ainda pior.
A Sofia, como todas as meninas independentemente da era a que pertencem, passou por várias fases: os seus desastres, as férias com as primas, a evolução para uma menina exemplar e digna de amor e carinho. Na minha opinião, as Sofias desta vida são muito subestimadas: esta personagem é apenas uma metáfora para os disparates que fazemos. Na altura não conseguia sequer entender a mensagem do livro, as palavras eram aquilo que diziam ser. No mundo dos pequenos, as coisas não têm duplo sentido nem mensagens escondidas. Se a Sofia comia as frutas cristalizadas do bolo das visitas, era naturalmente castigada e açoitada como uma escrava negra na sanzala. Para mim, as frutas hoje são muito mais do que isso: são a afirmação escondida de quem faz asneiras deve ser castigado para se tornar perfeito um dia. Uma coisa muito humana à partida, mas que me deixava muito triste pela Sofia. Ninguém tem culpa de ser desastrado, muito menos enquanto criança. Deixaria uma mensagem à Condessa de Ségur, russa de nascença, quem sabe fria e austera. Deixem as Sofias brincar, estragar bonecas. São elas que dão origem às pessoas mais divertidas, tipo Bridget Jones.