Há alguma coisa de fascinante com as pessoas que se dão com as pessoas de quem gostamos.
São pessoas perfeitamente normais, sou capaz de reconhecer isso, mas fazem parte de um mundo paralelo e desconhecido que é o dele. Ou dela. Isso não lhes tira magia, mas acrescenta-lhes. Podem ter o prazer de presenciar na primeira pessoa detalhes do dia-a-dia aos quais não temos acesso, como o sentar na sala de aula, abrir a mochila e pegar na caneta para começar a escrever. Estes contextos tão comuns e diários levantam-me imensas perguntas pequeninas mas sentidas, como é que ele pegará na caneta? As pessoas com quem ele passa o dia sabem. E o mais fascinante é que elas nem se apercebem do seu poder, do ciúme tonto e inexplicável que provocam pura e simplesmente por usufruírem de um prazer desconhecido, inconsciente. Partilham este dom com as outras pessoas, de uma categoria completamente diferente, aquelas pessoas que desconhecem os seus próprios dons e que por isso mesmo os põem em prática tão bem ou melhor do que se o reconhecessem, aquelas pessoas que sem saberem nos fascinam. Pegar-lhe nos olhos, fingir-me de estranha, sentar-me na carteira ao lado da dele e observar aqueles detalhes só possíveis de ser vistos quando ele não sabe que está a ser observado, arranjar uma espia que me filme todos os movimentos, é impossível e ainda mais maravilhoso. Morro de curiosidade. Das amigas, da senhora do bar, do homem que lhe passa multas de trânsito ou lhe vende o jornal todas as manhãs, dos olhos dessas pessoas que têm o prazer de assistir a pura magia, aos pequenos pormenores das pessoas de quem gostamos. Não sabem quem é, a quem pertence, toda a gente faz parte da vida de alguém. Mas a pessoa de quem gostamos, essa tem uma espécie de auréola que carrega todo o dia, desde que acorda até que volta a acordar outra vez, sem interrupção, um cartaz invisível que grita, este é o meu amor, vejam como ele anda, como assobia e como os olhos dele deambulam no metro, até do metro tenho ciúme, daquela cadeira usada e pouco macia que lhe serve de apoio, quem me dera ser essa cadeira e ler-lhe os pensamentos. Este fascínio ultrapassa em muito as pessoas das pessoas de quem gostamos: os objectos também são vítimas, mas em menor escala. São as coisas dele, as coisas que comprou por algum motivo ou por nada de especial, a decoração do quarto que ri de mim e goza com a minha pequena obsessão pelo detalhe, os objectos têm noção a quem pertencem e orgulham-se desse estatuto, intocáveis. As pessoas não, e isso torna-as ainda mais fascinantes. Têm um privilégio enorme que desconhecem, as estúpidas! Só lhes peço que não acordem e não se apercebam da minha mania, será que toda a gente sabe do privilégio que é assistir a pormenores que completam muito para além do amor? Estes pormenores inacessíveis são verdadeira intimidade. Quando ele trouxer a caneta, a mochila e a senhora do bar para casa, eu vou saber que o conheço de verdade. Até lá, invejo e rogo pragas a todos os que podem assistir e que não sabem o que vêem.