Alguém que me fale assim de amor...

"Gosta sempre de mim. Imagino o frio que aí estará, a nossa casa que me hei-de lembrar sempre, apesar de nunca mais voltarmos para lá, o porteiro, a rua, os móveis, a cozinha, a cama com o cobertor ao meio, as gravuras, e vejo como fui feliz aí contigo, como tenho sido sempre feliz contigo, como gostaria de voltar, de voltar depressa para poder ver-te, tocar-te, falar-te, meter a minha chave na fechadura do teu corpo, a língua na tua boca, apertar-te o peito com as mãos, morder-te o pescoço, voar, lembro-me de pormenores absurdos, do sinal do peito do teu pé, do teu dente de ouro, do canal da tua nuca, e gosto absurdamente de todos: minha senhora, eu amo-a. Se não a conhecesse persegui-la-ia pelas ruas com propostas sórdidas e veementes. Recordo-me do primeiro dia em que a vi, do seu perfil de Boticelli, recordo-me do ano seguinte na praia, do seu cabelo preso atrás e da sua risca ao meio, do sei aspecto de retrato de Ingres, recordo-me do seu cabelo cortado e do seu ar de midinette, e amo perdidamente todas as suas encarnações, sem poder escolher entre elas. Amo a sua gravidez, os seus gestos, os seus sorrisos e as suas fúrias. Amo as suas zangas e a solenidade calada e digníssima dos seus amuos. Amo as suas recriminações e os seus beijos. E amo o seu filho, o filho de Vossa Excelência, meu amor.
António"