Hábitos de gente

É justo. Por esta vez digo que ganhaste, uma pessoa habitua-se realmente a tudo. Se quiser, essa mesma pessoa dedica-se à pintura, deixa para trás o amor e o hábito de outras coisas e pinta muito, o suficiente para se tornar um Picasso. Não que lhe interesse muito é verdade, o grande objectivo não é vender quadros mas antes pintar imagens e caras, se os outros não quiserem pinta a sua, até faz como aquele pintor que ficou maluco e corta uma orelha, ou as duas, só para se pintar de perspectivas diferentes. A seguir fura a orelha, e lançado nesta coisa das perspectivas diferentes, rapa o cabelo e deixa uma crista azul, pinta-se assim, e entretanto a juntar à crista já tem um blusão de cabedal preto, habitua-se a esta figura nova, anda na rua e chamam-lhe punk, e a verdade é que punk que é punk não pinta com óleo nem pincéis, no máximo desenha, rabisca umas coisas num bloco de notas a carvão e para não se dar a esse trabalho compra antes uma máquina fotográfica e dispara sobre tudo o que lhe parece significativo ou de uma maneira ou de outra, extraordinário.
O punk é rápido a apanhar-lhe o jeito, começa a vender a sua arte na rua e ainda ganha uns trocos. O punk tem jeito para o negócio! Não admira, já o pai o tinha. Em menos de um mês vendeu mais fotografias do que o fazedor de carteiras recicladas da banca ao lado, as pessoas estão-se a borrifar para a reciclagem e querem é viajar. E assim, bem vistas as coisas, em menos de um ano uma pessoa pode ser pintora, punk, retratista e desorelhado, comerciante e fotógrafo, e se vires bem acumulou discretamente uma série de aptidões que às vezes quando são planeadas não correm tão bem, uma pessoa não planeia ser punk mas acaba por sê-lo, naturalmente que é levado a isso.
- ´Tás a querer dizer que há um punk em todos nós?
Um punk, um fotógrafo, um pescador ou um carteiro, tanto me faz. O que quero fazer é dar-te razão, que uma pessoa é realmente capaz de se habituar a tudo, e como te disse, acaba por ter mais jeito para aquilo que ainda não descobriu do que para o que fez a vida inteira, imagina a frustração de um arquitecto que lhe dá para a agricultura, e é muito mais feliz a plantar batata doce do que a pensar num projecto alternativo e milionário para as Torres Gémeas...
- Olha eu acho que uma pessoa nunca se habituaria a comer estrume, por muito agricultor que fosse.
Então a minha conversa não teve objectivo nenhum. Fez uma pausa. Tens razão, ninguém se habituaria a uma ementa onde não há diferença entre o que se caga e o que se come.