Um programa romântico, 1

- Apaga essa merda.
Ele apaga, não porque não lhe apetecesse fumar o resto, mas porque não queria pegar fogo a nada ou assim, se o cigarro se pegava outra vez às cortinas era como pastilha elástica e depois tinha que ouvir a avó, para além de fumar ainda tinhas de me pegar fogo à casa, e para isso é que ele não estava, para aturar velhotas já lhe bastavam as ´storas e fazia-o porque era obrigado.
Então apaga-o, e depois? Começa a pensar. Tem praticamente 22 anos, porra. Onde é que tinha andando aquele tempo todo? Já tinha levado com tantas ordens nas orelhas que se tinha esquecido de quem era. Joaquim, Paulo, António, já não fazia muita diferença. O que contava é que tinha praticamente 22 anos e nem sequer podia fumar em casa da avó, especialmente ao pé das cortinas. Se estivesse em cima de uma das carpetes e atirasse cinza por acaso, também refilavam com ele? Por acaso tinha algum cinzeiro colado à mão? Era o que lhe faltava.
Portanto, estava no pico da sua vida viva. Não estava especialmente irritado, nem amuado, nem outra série de coisas, estava só ali. A olhar para os dedos dos pés fechados nuns chinelos feios, de pano ou lá o que era, e pensou no quão felizes deviam ser os dedos dos pés que nem sequer tomavam muito banho, ao menos estavam colados a todos os outros que amavam e conheciam.
Tinha 22 anos e estava colado a coisa nenhuma. Já tinha passado os 18, os 19, fazer anos já não tinha a mesma piada. Agora estava a ficar velho, e nem sequer o deixavam fumar. Com 22 anos e nem o deixavam fumar. Se dissesse de uma vez por todas à família que era gay e que gostava era de estar fechado num quarto cheio de homens, ou de ser júri num concurso de roupa interior masculina, será que já o deixavam fumar à vontade?
- Olha lá ´vó e se fossemos antes comer um gelado e esquecessemos isto tudo?
- Esquecer o quê, filho? Tira masé o cigarro de cima da mesinha que ainda me pegas fogo ao napron.
Pronto. Esquecer esta história toda que tinha começado na cabeça dele, a de estar fechado num quarto com o Brad Pitt e o Tom Cruise em tronco nu, a da velhota a dizer-lhe para afastar os cigarros do mundo, do ar da casa dela, não fossem fazer fogo ao entrar em contacto com o oxigénio, esquecer esta história da avó o mandar para um seminário para fazer dele padre dedicado ao Senhor, como é que era possível, a velhota era tão devota e mandava-o apagar "a merda" do cigarro? Os crentes profanam ao profanar as palavras, ou profanam só de pensar nelas?