Quem não te conheça que te inveje

Ai filha.
Acordei tão cansada. Nem me lembrava onde tinha passado a noite anterior, vê lá a desgraça. Só esperava que não me tivessem posto nada na bebida, ou esdrunfos ou estrunfos ou lá como diz a tua prima, aquelas drogas que te deixam sem memória na manhã seguinte. Eu cá gosto de me lembrar de tudo.
E não é que me lembro mesmo? Lembro-me de tudo o que aquela rapariguinha me disse, não te lembras, aquela loirinha de cabelo comprido às farripas, parecia uma pobrezinha mas depois andava com uns ténis de cento e tal euros, claro que te lembras, com as meias todas routas de propósito, estas rapariguinhas ainda apanham uma constipação, pior, uma hipotermia que este tempo não anda para brincadeiras. E depois andava com uma malinha preta para todo o lado, com um copo de plástico cheio daquela cerveja baratinha sabes, daquela que sabe mesmo a água suja, aquilo tava morno e espalhado pelos ténis da rapariguita coitada, meteu-me pena mas ao mesmo tempo só me apeteceu ir contra ela e mandar-lhe aquilo para cima, a fingir que era um banho que desses ela não deve ver à algum tempo sabes?
E depois. Disse-me que eu não valia nada, que era uma bimba, uma saloia, uma iletrada, como se eu soubesse o que isso é, chamou-me vaco suja e riu-se das minhas sabrinas, deu mais um gole naquela água suja e escarrou para o lado como o tio Fernando costumava fazer. E eu olhei para ela, pensei que até estava muito bem vestida, que até gostava bastante daquelas sabrinas, aquelas douradas sabes filha, aquelas que comprei na feira e das quais me orgulhei muito, e sabes que mais filha, deu-me vontade de chorar.
Não foi de pena, foi de raiva. Aquela rapariguinha gozou comigo e com as minhas sabrinas e eu nem sequer me importei, apeteceu-me ficar ali a olhar para ela a insultar-me, porque eu bebia ice-tea porque gosto e ela bebia aquela cerveja a 50 centimos porque era barato. Porque é que não come do lixo nem usa os ténis do irmão, também era barato não achas? Eu cá acho que gosto muito de fazer o que faço. Acho que tenho pena, mas primeiro deixa-me lá rir um bocado filha, deixa-me lá rir daqueles infelizes que se acham melhor que eu e nem preciso de ir ao fundo, encontro-lhe pulgas à superficíe e nem preciso de procurar muito.