Colados aos homens como pastilhas nos sapatos

É a história de Pedro Sombra,
cuja namorada chegava a esquecer a existência, por existir exclusivamente em sítios com luz suficiente e em objectos que expostos à mesma, provocassem sombra. Pedro Sombra sofria de uma mutação cada vez menos rara, à qual as pessoas davam o nome de síndrome-de-homem-colado, pois todos eles viviam literalmente colados aos outros homens. Homens com corpo sólido, palpável, pernas, boca e unhas. Homens cujas namoradas, mães, amigos amavam precisamente pelo que eles eram. Homens com corpo sólido, palpável, pernas, boca e unhas.
Era esta a maldição do homem-colado, e em especial de Pedro Sombra. Como tinham de sobreviver dos outros homens reais, de corpo sólido e palpável, colavam-se às suas sombras apanhando boleia até aos sítios onde queriam ir, viajando noo seu homem-transporte nunca tendo a necessidade de apanhar um taxi, um autocarro ou um metro por si só. Seria demasiado complicado para o fazerem. De noite, todos os homens-colados como Pedro Sombra se reuniam nos bares mais luminosos da cidade, esperavam as prostitutas-sombras no reflexo de um candeeiro de rua e faziam amor ali no meio, sem que ninguém desse por eles. Como se ser atropelado, pisado, cuspido, arrastado, magoado não fosse já castigo suficiente, tinham de ser ignorados, fazendo todo o tipo de nojices em praça pública, nas esquinas, debaixo das mesas de escola, dentro das lancheiras dos filhos dos homens-transporte.
Para Pedro Sombra, ser ignorado não era de todo a pior parte da maldição à qual o tinham obrigado. A pior parte era a do transporte, a de ser transportado para todo o lado nos homens-transporte que iam aparecendo. O transporte em si era vantajoso, mas todo o processo tinha levado vários homens-sombra da família de Pedro à loucura. Ao isolamento. À morte, que para um homem-sombra não era mais complicada do que expor-se directamente ao Sol sem nenhum homem-transporte a cobri-lo. Expostas, todas as sombras do mundo deixariam de existir, deixariam de fazer sentido.
O processo. Era mais dificil de explicar do que provavelmente o farei parecer. Sempre que transportado, o homem-sombra transformava-se no homem-transporte que o carregava. Tal e qual. Como siameses. Os mesmos pensamentos, a mesma voz, mesmos desejos, sonhos e vontades. Actualmente, Pedro Sombra vive na sombra de um escritor muitissimo talentoso e a sua namorada, na sombra de uma actriz cujo principal objectivo é ganhar todo o dinheiro que conseguir aceitando o maior número de papéis degradantes que conseguir. Encontram-se duas vezes por semana, no mesmo café da praça Pratowski, e à mesma hora, escritor talentoso e actriz oportunista fazem amor, conversam, entristecem-se juntos. É muito raro o casamento entre duas sombras. Quando uma se começa a apaixonar pela personalidade usurpada da outra, esta pode desaparecer como que por magia, se o seu homem-transporte mudar de cidade, de país ou pior, morrer. Os mortos são inutilizáveis para as sombras, e quando um transporte morre, o seu sombra morre com ele.
A vida de Pedro Sombra é assim, tão boa ou tão má quanto vos parecer. Vive dos outros, alimenta-se das suas esperanças e no fundo, até gosta. Nunca se conheceu verdadeiramente. Sabe que o seu nome é Pedro, lembra-se de sua mãe o chamar uma última vez antes de partir para o México na sombra de uma emigrante,
- Pedro.
não sabe mais nada. Sabe que é escritor, mas que amanhã bem poderá ser carpinteiro ou motorista. Como lhe apetecer. No fundo até gosta. Dá-lhe menos trabalho.
No fundo até gosta. De ser o parasita que é. E no fundo até sabe. As sombras existem desde sempre, vivendo dos outros, colados aos seus sonhos e esperanças. Coladas aos homens com corpo sólido, palpável, pernas, boca e unhas. Pedro Sombra não teve, nunca terá. Não precisa. Nunca saberá como são. Porque tem os dos outros, e pelo que sabe, a galinha do vizinho é sempre melhor que a sua. Nunca terá vida. Não importa. Tudo o que lhe importa é que é um escritor talentoso, e aquilo, ainda sabe fazer bem.