Nós


Testemunho de Marta. 1992


Pouco depois de ter corrido para fora da barriga da minha mãe, pegaram em mim e levaram-me para uma sala pequena mas extremamente iluminada. Agora que penso nisso, sei que a sala para onde me levaram eram um estúdio, porque me lembro do cheiro a tinta e pincel, e a extrema luz que me ofuscava era propositada para não deixar escapar nenhum pormenor do meu corpo branco, todas as curvas e covas tinham de ser devidamente coloridas. Para ninguém duvidar que o sistema realmente funcionava; o de pintar os bebés como pequenos azulejos, aquecidos durante 9 meses e depois enviados para o mundo real.
Só depois de me ter habituado à luz é que consegui compreender o processo que me esperava. O da pintura. Um dos médicos, o da a bata mais pintalgada, soube que morreu recentemente, pegou num pincel e coloriu-me todas as partes brancas de mim, sem excepção. A princípio, somos brancos. Um branco tão branco que o branco conhecido é apenas uma aproximação, embora muito remota mas uma aproximação, do branco puro dos bebés. Porque esta é a verdade, os bebés são a coisa mais pura do mundo. Mais puros que a arte, mesmo antes de ser criada. O que fizeram comigo, e farão aos meus filhos e netos, é arte. Apesar de controversa, mas que estilo de arte não o é? Sim, foi mesmo assim. Fui pintada de cor-de-pele dos pés à cabeça, sem excepção. Estava tão excitada que nem senti as cocegas do pincel na minha pele sensivel. Depois, pegou noutro pincel, mais fino que o anterior, e pintalgou-me aos poucos de pequenas pintas castanhas, primeiro a cara e depois no peito, nas costas nos braços, uma e outra vez. Cansado de ser minucioso, fez muitas outras ao calhas pelo corpo fora, nas costas, nas pernas, nos pés. Todo o meu corpo, o nosso corpo, é uma tela de pintor que os médicos, até os médicos, se divertem a encher de cor e de enganos. Quanto ao resto, passei para as mãos de outros médicos que foram generosos o suficiente para me colocar todos os ossos no lugar certo. Deram-me também dois olhos manchados de verde e uma boca que, depois de enchida e avermelhada com um pincel de veludo, também encheram de pequenas pintas nas bordas.
No entanto, nenhum dos médicos foi bruto ou egoísta como se diz por aí. Inventam outros disparates para se deixar de acreditar no sistema, para se despedir os médicos que fazem um bom trabalho com o corpo humano e meter nos nossos atliers gente comprada, cheia de interesses, contratada não para dar uso à sua imaginação mas para criar um exército perfeito sem diversidade. A mim, por exemplo, foi colocado pouquissimo cabelo na fase inicial da minha vida. Todo o que tinha era curto e macio, fazia lembrar pêlo de um felino. No entanto, sou morena. Não sou ruiva, e acredito que o facto de me terem colocado as pintas por todo o corpo é mais um elemento que prova a nossa diversidade, mesmo contrariando um pouquinho as leis da Natureza. Aliás, há poucas coisas que os médicos de atlier não possam controlar...
Se sou feliz assim? Acredito na felicidade, sim. Porquê, você não é feliz com o cabelo que lhe deram? Pode sempre tirar esse e colocar outro, mas vai perder a sua identidade.. Literalmente. Todas as suas fotografias de sistema são consigo loira. Aceite-se, por favor. Tome-me como exemplo. Estou feliz com o meu condicionamento. A minha mãe de cabelo azul, dando-se ao luxo de ter uma filha morena! Todos os pais são responsáveis por uma enorme corrente de diversidade. E no entanto, são todos felizes. Ninguém corre o risco de ser tomado por filho de outra pessoa, porque os próprios filhos são diferentes dos pais. Há cada vez menos crianças em orfanatos, pois já não correm o risco de terem dedos apontados às suas caras, você sabe como os miúdos pequenos são maus, a gritar "és tão diferente da tua mãe!". Ponha-se você neste lugar e diga-me se tem coragem de dizer aos miúdos que tudo isto acabou.
Ponha-se no meu lugar agora. Afinal de contas, sou extremamente feliz. Vivo num mundo onde cada um é exactamente aquilo que é.
O próximo passo? Sentimentos comuns. Na minha opinião. Imagine... Pessoas pré-destinadas. Poupava-se uma série de tempo. O que é que acha?