O caso de grupo à parte


A minha querida Alice não tinha nascido para ser gente. Tinha nascido para ser coisa, em toda a sua qualidade de objecto. De qualquer um, menos de pessoa. Para isso é que ela não tinha jeito nenhum; não estava para calmas nem para boas educações, e pelo pouco jeito que naturalmente tinha, culpava o facto de ser filha única. Se lhe tivessem dado irmãos, se ao menos lhe tivessem dado opção de escolha, escolheria ser gente e não objecto de gente. Ninguém nasce assim, até porque nem Alice nem o resto das pessoas não nascem já sendo gente, são trabalhadas ao Sol e transformadas naquilo que são em todo o auge do que podem vir a ser. Acontece que o trabalho de Alice ao Sol não tinha dado certo. O tribunal das Almas concluiu que o caso da menina que não tem sentimentos tipicos de um ser humano - porque tudo vai dar a tudo o que sentimos - foi boicotado, e não sabem quem culpar. Se Alice se o mundo que se apoderou dela. As vezes o mundo faz das suas, apoderando-se das pessoas sem lhes dar espaço para respirar, e muito menos opção de escolha. E se ele é o culpado de todos os sentimentos pouco humanos, também acaba por ser o impulsionador de Alice para se fechar no quarto a ouvir as vozes do seu próprio pensamento. Porque até as coisas pensam. Até as coisas falam, eventualmente consigo próprias, mas falam. Em língua de gente! E porque apesar de toda aquela pele que lhe cobria o corpo, Alice não se sentia. O tribunal das Almas reconsiderou e falou - a menina não é normal, não devia viver no meio deles - e o pai de Alice não considerou a falta de filhos em sua casa, mas sim a sabotagem do tribunal em estragar-lhe a única que tinha.
A verdade é que a própria Alice nem sabia quem culpar pela sua condição. Se não se sentia gente, era porque tanto o mundo como o tribunal assim a tinham definido. Se nunca tinha amado ninguém, era porque o mundo nunca lhe tinha ensinado a amar.
De qualquer maneira, como se saberia amado o segundo homem na terra?
Paralelamente à história de Alice, surge a história dos sentimentos. Tão ou mais antiga - e infelizmente não menos importante - que as histórias de Alices que não nasceram para ser gente.
Quem me dera a mim não ser gente! Não teria de saber sentir, nem ter etiquetas coladas nos sentimentos para saber em que situações usar. Hoje comprei um novo. Chamei-lhe Raiva, apesar de todos lhe chamarem Medo. Tenho Raiva do escuro. De certa maneira, a raiva diminui-me o medo verdadeiro. É uma brincadeira parva, como meter noz moscada dentro do saleiro. Não deixa ninguém satisfeito, menos a pessoa que a decidiu brincar. Assim, ao trocar o nome dos sentimentos, é só isso mesmo que acontece, o mesmo sentimento com o nome trocado. Se o tribunal das Almas chegasse ao pé da menina e lhe dissesse, Alice estás cheia de sentimentos, ela saberia que não sentir nada era igual a ter muito. Afinal sempre há mentiras que funcionam como placebos, e a menina ficaria feliz por saber pela primeira vez como uma pessoa de verdade se sente. Se estão tão cheias, porque é que são tão infelizes?